segunda-feira, 16 de maio de 2011

Dialogo entre Exú e Oxalá

 O céu e a terra fundiam-se no horizonte distante,
parecendo uma coisa só, como se não houvesse separação entre o mundo
espiritual e o material, a consciência individual e a cósmica.

            Sentado sobre uma pedra em uma enorme montanha, de cabeça
baixa e olhos apenas entreabertos, Exu observava o fenômeno da
natureza e refletia sobre o seu interminável trabalho.

            _Como é difícil a humanidade – pensou em certo momento –
parece nunca estar satisfeita, está sempre querendo mais e, em sua
essência egoísta desarmoniza tudo, tudo...  Tudo que era para ser tão
simples acaba tão complicado.

            Com os olhos habituados a enxergar na escuridão e na
distância, Exu observou cada canto daqueles arredores.  Viu pessoas
destruindo a si mesmas através de vícios variados, viu maldades
premeditadas e outras praticadas como se fossem atos da mais perfeita
normalidade.  Viu injustiças, principalmente contra os mais fracos e
indefesos.  Com seus ouvidos, também atentos a tudo, ouviu mentiras,
palavras de maledicência, gritos de ódio e sussurros de traição.

            Exu suspirou.

            _Serei eu o diabo da humanidade? – pensou ironicamente, ao
lembrar o quanto era associado à figura do demônio.  Passou horas
observando coisas que estava habituado a ver todos os dias: mentiras,
fraudes, corrupção, traições, inveja, e uma gama enorme de sentimentos
negativos.

            Foi quando estava imerso nesses pensamentos que Exu ouviu
uma voz ao seu lado, dizendo naquele tom austero, porém complacente:

            _Laroyê, Senhor Falante.

            Exu ergueu os olhos e vislumbrou a figura altiva de Oxalá.

            _Èpa Bàbá – respondeu Exu, fazendo um pequeno movimento
com a cabeça, em sinal de respeito.

            _Noto que está pensativo, amigo Exu – falou Oxalá.

            Exu respirou fundo, contemplou novamente o horizonte e respondeu:

            _Trabalhamos tanto...  e incansavelmente, mas os homens
parecem não valorizar nosso esforço.

            Oxalá moveu os lábios para dizer algo, mas antes que isso
acontecesse, Exu, como que prevendo o que seria dito, continuou:

            _Não falo em tom de reclamação, sou um trabalhador
incansável e o amigo sabe disso.  É com prazer que levo o que tem ser
levado e retiro o que deve ser retirado.  É com satisfação que abro ou
fecho os caminhos, de acordo com a necessidade de cada um, é com
resignação que acolho sobre minhas costas largas a culpa do mal que
muitos espíritos encarnados e desencarnados fazem, não reclamo do meu
trabalho.  Sou Exu, para mim não existe frio ou calor, cansaço ou
preguiça, existe apenas a necessidade de cumprir a tarefa para qual
fui designado.

            _Se mostra tão resignado e, no entanto, parece que
deixa-se abater pelo desânimo – comentou Oxalá, apoiando-se em seu
paxorô.

            Exu soltou uma gargalhada, ao que Oxalá deu um leve
sorriso, com um movimento quase imperceptível no canto direito dos
lábios.

            _Não sou resignado nem tampouco estou desanimado – falou
Exu – estou pensativo sobre pouca inteligência dos homens.  Veja só:
como responsável pela aplicação da Lei Cármica observo muita coisa.
Observo não apenas o sofrimento que alguns homens impõem a si mesmos,
mas vejo também as incessantes oportunidades que o Universo dá a cada
dos seres que habitam a Terra.  O aprendizado que tanto precisam lhes
é dado por bem, mas quase nunca enxergam pelo amor, então lhes é dada
a oportunidade de aprender pela dor, mas geralmente só lembram a lição
enquanto a dor está a alfinetar sua carne.  Com o alívio vem o
esquecimento e todos os erros e vícios voltam a aflorar.

            Oxalá fez menção de dizer algo, mas com o dedo em riste
entre os lábios, novamente Exu o impediu de falar.

            _Ouça – disse Exu, colocando a mão em concha na orelha,
como se ele e Oxalá precisassem disso para ouvir melhor.  E ambos
ouviram o som que vinha da Terra.  O som da inveja, dos maus
sentimentos, da maledicência, da promiscuidade, da ganância.  Exu deu
outra gargalhada e disse:

            _Percebe?  Temos trabalho por muitos séculos ainda.

            _E isso não é bom? – perguntou Oxalá, que dessa vez não
deixou Exu responder e continuou:

            _Pobres homens, ignorantes da própria grandeza espiritual
e da simplicidade do Universo.  Se não desconhecessem tanto o
funcionamento das coisas, seriam mais felizes.

            _Não estão preocupados em discernir o bem do mal – resmungou Exu.

            _E você está, Senhor Falante? – tornou Oxalá.

            Mais uma vez Exu gargalhou.

            _Para mim não existe o bem ou o mal. Existe o justo, bem sabe disso.

            _Então por que tenta exigir esse discernimento dos pobres homens?

            _Eu conheço os caminhos – respondeu Exu um tanto irritado
– para mim não existem obstáculos, todos os caminhos se abrem em
encruzilhadas.  Para mim as portas nunca se fecham e as correntes
nunca prendem. Conheço o sutil mistério que separa aquilo que chamam
de bem daquilo que chamam de mal.  Não sou maniqueísta, não sou
benevolente, pois não dou a quem não merece, mas também não sou cruel,
pois sempre ajo dentro da Lei.  Os homens, coitados, acreditam na
visão simplista do bem e do mal, como se todo o Universo, em sua
“complexa simplicidade” se resumisse apenas entre o bem e o mal.

            _Pobres homens – repetiu Oxalá.

            _Pobres homens – concordou Exu – mesmo olhando o Universo
de uma forma tão simplista, dividido apenas entre bem e mal, acabam
sempre demonizando tudo, achando que o mal é o melhor caminho para
conseguir o que desejam ou então acreditam que são eternas vítimas do
mal.  E o que é pior, quase sempre eu é que sou o culpado.

            _Mas é você o responsável pelo mal? – perguntou Oxalá,
admirando o horizonte.

            _Sou justo, apenas isso – respondeu Exu.

            _Não seria a justiça uma prerrogativa de Xangô? – tornou o
maior dos orixás.

            Exu olhou fundo nos olhos de Oxalá e respondeu:

            _Estou a serviço do Universo, de cada uma das forças que o
compõe, inclusive do Senhor da Justiça.

            _Isso significa que trabalha em harmonia com o Universo, caro Exu?

            _Imaginei que soubesse disso – respondeu Exu, irônico como sempre.

            _Acho que sempre soube.  Quando observo o horizonte e vejo
o céu fundindo-se à Terra, percebo o quanto o material pode estar
ligado ao espiritual.  Percebo que apesar de todas as dificuldades que
os próprios homens criam, é possível acender a chama da fé em seus
corações.  Percebo o quanto eles são falhos, mas percebo também o
quanto são frágeis e precisam de nós – e nesse momento pousou a mão
sobre o ombro de Exu – sejam dos que trabalham na luz ou na escuridão,
pois tudo faz parte do Uno e se inter-relacionam.  O mesmo homem que
hoje está nas profundezas mais abissais, amanhã pode ser o mensageiro
da luz.

            Exu olhou para os olhos de Oxalá, como se não estivesse
concordando, mas dessa vez foi Oxalá quem não deixou que o outro
falasse, prosseguindo com sua narrativa:

            _Se não fossem os valorosos guardiões que trabalham nas
regiões trevosas, dificilmente os que ali sofrem um dia alcançariam o
benefício da luz.  Se houvesse apenas a luz, não haveria o
aprendizado, que tem como ponto de partida as trevas.  O Universo tão
simples é ao mesmo tempo tão inteligente, que mesmo nós, que
observamos os homens a uma distância grande, às vezes nos
surpreendemos com sua magnitude.  Os homens são frutos que precisam
amadurecer e você, amigo Exu, é a estufa que os aquece até o ponto
certo e eu sou a mão que os colhe como frutos amadurecidos.

            _Quem diria que trabalhamos em harmonia? – disse Exu em
meio a um sorriso – acreditam que vivemos a digladiar quando na
verdade trabalhamos em busca de um mesmo objetivo: o aprimoramento da
raça humana.

            Oxalá só não soltou uma gargalhada porque não era esse seu
hábito (e sim o de Exu), mas disse sem conseguir esconder o
contentamento:

            _Então, companheiro Exu, não temos porque lamentar.  A
ignorância em que vivem os homens é sinal de que ainda temos trabalho
a realizar.  A pouca sabedoria que possuem significa que ainda estão
muito próximos ao ponto de partida e cabe a nós, não importa se
chamados de “direita” ou “esquerda”, auxiliá-los em sua caminhada, que
é muito longa ainda.  Apenas contemplar as mazelas dos corações
humanos não irá auxiliá-los em nada.  Sou a luz que guia os olhos da
humanidade e você é o movimento que não a deixa estática. Se pararmos
por um segundo sequer, atrasaremos em séculos e séculos o progresso da
raça humana, que tanto depende de nós.

            Nesse momento o sol começou a raiar timidamente no
horizonte, separando o céu e a Terra.  Exu levantou-se da sua pedra e
pôs-se a caminhar montanha abaixo.

            _Aonde vai, Senhor Falante? – perguntou Oxalá, como se não soubesse.

            _Vou trabalhar, Senhor dos Orixás – respondeu Exu
gargalhando novamente – Esqueceu que sou um trabalhador incansável e
que trabalho em harmonia com o Universo, mesmo que ele me imponha a
luz do sol?

            Oxalá não respondeu, mas esboçou um sorriso tímido.  Assim
trabalhava o Universo: sempre em harmonia.  Os homens, mesmo ainda
presos a tantos conceitos primários, trilhavam os primeiros passos em
direção ao progresso, pois não estavam órfãos de seus orixás e
protetores.


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